INSTITUTO CULTURAL DO CARIRI:
(RE)INVENTANDO O ESPAÇO DO CARIRI CEARENSE (1950 –
1970)
Jane Semeão1
José Cláudio Leôncio Gonçalves2
RESUMO
Em 1953 é fundado no Crato o Instituto Cultural do Cariri (ICC), sociedade civil que “tem por finalidade o estudo das ciências, letras e artes em geral, e especialmente, da História e da Geografia Política do Cariri” (ITAYTERA, 1955, 179). A partir de uma escrita da história e um conjunto de outras ações que colocavam a região numa relação tanto de identificação quanto de diferenciação geográfica e cultural do restante do
Ceará, e mesmo do Nordeste, o Instituto logo se tornou um lugar privilegiado de produção de identidade e da história do Cariri cearense. O que se pretende nesse artigo é fazer uma reflexão sobre o ICC e as ações empreendidas por seus organizadores problematizando a atuação dos mesmos para a (re)invenção do Cariri cearense.
Palavras-Chave: Cariri, Instituto Cultural do Cariri, (re)invenção, espaço
ABSTRACT
In 1953 was founded the “Instituto Cultural do Cariri” (ICC) in the Crato city, civil society which “aims to study the sciences, literature and arts in general and especially of History and Political Geography of Cariri (ITAYTERA, 1955, 179). From a writing history and a many other actions that put the region into a relationship of identification and differentiation geographical and cultural from the rest of Ceará, and even the Northeast, the Institute soon became a privileged place of production of identity and the history of Cariri. The aim of this paper is to reflect on the ICC and the actions taken by
the organizers questioning their actions for the (re) invention of Cariri.
Key-Words: Cariri, Instituto Cultural do Cariri, (re)invention, space
Aos quatro dias do mês de outubro de 1953 é criado no Crato o Instituto
Cultural do Cariri (ICC), sociedade civil que, segundo seus fundadores, “tem por finalidade o estudo das ciências, letras e artes em geral, e especialmente da História e da Geografia Política do Cariri”3.
Professora Mestre do Departamento de História da Universidade Regional do Cariri (URCA). O artigo que ora apresentamos é fruto da pesquisa de Iniciação Científica (PIBIC-URCA) intitulada “O Instituto Cultural do Cariri e a (re)construção do espaço caririense (1950-1970)”, ainda em curso e em sua segunda fase (que cobrirá agora os anos de 1980 e 1990). Esse texto foi apresentado no XII Encontro Estadual de História do Ceará ocorrido em junho de 2010, momento em que a pesquisa estava em seu primeiro semestre de desenvolvimento. Contato: janesemeao@globo.com.
2 Graduado do Curso de História da Universidade Regional do Cariri e mestrando no Curso de Pós- Graduação em História da UFRN. Trabalhou na primeira fase do projeto (2010) como bolsista.
3 “Ata da Sessão de Fundação e Instalação do Instituto Cultural do Cariri e de Eleição de Sua Primeira Diretoria”. Revista Itaytera, n0 I, 1955, p.179.
Seus idealizadores, em sua maioria representantes da elite intelectual
cratense e de destaque no panorama político da cidade, congregaram força e ações em torno do projeto de (re)pensar o Cariri a partir de idéias e ideais almejados de elevação cultural, intelectual e econômica da região. Ao assim procederem, colocavam em circulação discursos e imagens que atribuíam à região e seus habitantes determinados sentidos, significados que tanto objetivavam construir uma diferenciação quanto uma identificação, seja geográfica, cultural e/ou histórica, da região em relação ao restante do Ceará e mesmo do Nordeste.
Em que termos se dá essa (re)invenção? Que elementos vão ser recorrentes
na construção discursiva do espaço caririense pelo Instituto? Que outras ações promovidas por seus membros, além da edição da revista Itaytera, vão dar visibilidade e contribuirão para essa (re)invenção que, entre outras questões, também põe em discussão uma identidade caririense? A partir desses questionamentos é que nos propomos a fazer uma reflexão sobre o ICC problematizando sua atuação para a (re)invenção do Cariri.
Embora o Instituto ainda hoje esteja em funcionamento, elegemos as décadas de 1950 a 1970 por considerarmos serem esses os períodos de maior efervescência intelectual de seus membros. Justifica também a periodização proposta o fato de nos anos 1960 em diante ter sido colocado em pauta pelos governos desenvolvimentistas uma preocupação e discussão sobre o regional. Ao analisar em seu trabalho de mestrado
a construção histórica e cultural do Crato como “cidade da cultura”, Cortez nos mostra como a partir desse período os intelectuais do Crato deslocaram de seus discursos uma preocupação que tinha como foco principal a cidade para a região na promoção do desenvolvimento regional4.
O Instituto Cultural do Cariri: ações em torno de um projeto Fundado o Instituto Cultural do Cariri, sua primeira diretoria ficou assim constituída: Presidente: Dr. Irineu Pinheiro; Vice-Presidente: Padre. Antonio Gomes de
Araújo; Secretário-Geral: Dr. José de Figueiredo Filho; Secretário: Antonio Levi 4 De acordo com a autora, “é lícito afirmar que a questão regional, e, nesse sentido, a apropriação do discurso do desenvolvimento regional para o plano micro-regional (Cariri), deslocou um pouco as fronteiras dos municípios no plano das ações políticas, diluindo aos poucos os bairrismos e conclamando o sentimento de pertencimento a uma região”. CORTEZ, Antonia Otonite de Oliveira. A construção da “cidade da cultura”: Crato (1889-1960). Rio de Janeiro, 2000, Dissertação de Mestrado, p.148.
3
Epitácio Pereira e Tesoureiro: Amaro José da Costa. Todos com suas competências descritas pelos “Estatutos do Instituto Cultural do Cariri”5. As Comissões Permanentes eram as seguintes: Comissão de Sindicância e Finança, Comissão de Ciências, Letras e Artes e Comissão de Organização da Revista, esta tinha como um de seus membros o Secretário Geral. Todas compostas por três membros sócios do Instituto e eleitos anualmente. Havia também as Comissões Especiais, que eram nomeadas pelo Presidente e dissolvidas logo que cumpridos os objetivos para os quais foram instituídas.
As atribuições de cada uma dessas Comissões, determinadas no Capitulo V
dos Estatutos, eram as seguintes:
Art. 36 – À Comissão de Sindicância e Finanças incumbe: a)- emitir
parecer sobre a idoneidade moral dos candidatos a sócios; b)- realizar
inquéritos quando estes se fizerem necessários; c)- emitir parecer
sobre as contas anualmente prestadas pelo Tesoureiro; d)- pronunciarse
sobres as despesas para qualquer fim, quando o seu valor for
superior a Cr$ 500,00, estudando os respectivos orçamentos.
Art. 37 – À Comissão de Organização da Revista compete: a)-
organizar e publicar a Revista do Instituto; b)- catalogar todos os
documentos manuscritos pertencentes à Revista, cujos originais serão
arquivados na Biblioteca do Instituto.
Art.38 – À Comissão de Ciências, Letras e Artes compete realizar os
estudos e proceder as pesquisas que lhe forem determinadas pela
Mesa, bem como emitir parecer sobre a idoneidade intelectual dos
candidatos e sócios.
Os sócios do ICC, cujo número não era limitado, eram agrupados em cinco
classes: a dos Fundadores (seus idealizadores e os que estavam presentes no ato de sua fundação), Efetivos (todos os sócios fundadores e os que participavam de forma ativa e assídua dos trabalhos do Instituto), Correspondentes (em grande parte filhos do Cariri mas residentes em outros estados ou cidades do Ceará e que mantinham correspondência com a agremiação, poderiam se tornar efetivos desde que passassem a morar na região), Honorários (recebiam tal distinção aqueles que ocupavam destacada “posição social ou reconhecido mérito pessoal e ainda em virtude de relevantes serviços
5 “Estatutos do Instituto Cultural do Cariri”. Revista Itaytera, n0 I, 1955, pp.181-188.
6 “Estatutos do Instituto Cultural do Cariri”. Revista Itaytera, 1955, n0 I, p. 185.
4prestados à Pátria”) e Beneméritos (aqueles que contribuíam com “elevado donativo de
valor histórico ou de qualquer outra espécie”)7.
Ao sócio efetivo, em sua sessão de posse, era exigido o compromisso efetivo
de trabalhar em prol do Instituto e de seu projeto de estudo das “ciências, letras e artes
em geral”. Publicamente, portanto, ele assumia o “seguinte compromisso: ‘Prometo
trabalhar pelo desenvolvimento do Instituto Cultural do Cariri e cumprir fielmente seus
Estatutos”8.
O trabalho não era pequeno, havia muito a fazer como podemos observar ao
lermos as ações propostas por seus acadêmicos contidas no Artigo 20 do Capítulo I de
seus Estatutos. Objetivando cumprir os fins a que se destinou, o Instituto manteria e
promoveria:
a) intercâmbio cultural com instituições congêneres, científicas e
literárias, nacionais e estrangeiras;
b) uma Revista, em que se publiquem trabalhos dos sócios e
colaborações de estranhos;
c) uma biblioteca e arquivo em que se guardem e relacionem os
papéis, livros, documentos, cartas geográficas, autógrafos, etc.,
obtidos pela Sociedade ou a ela oferecidos;
d) um museu regional;
e) o culto, por meio de comemorações adequadas, dos feitos de nossa
história, especialmente do Cariri;
f) a restauração e a conservação de arquivos públicos e particulares, de
símbolos e monumentos de qualquer natureza ligados à história,
existentes no Cariri e o estudo dos antigos usos, costumes e tradições
regionais9.
Após a fundação da referida “sociedade”, seus sócios não mediram esforços
para cumprir com os objetivos a que se propuseram. Incansavelmente programaram e
executaram ações que garantissem, nas palavras de J. Lindemberg de Aquino, membro
efetivo, a “valorização do Cariri”10.
7 Idem, p. 181 e 182.
8 Ibidem, p. 183.
9 “Estatutos do Instituto Cultural do Cariri”. Revista Itaytera, 1955, n0 I, p. 183.
10 AQUINO, João Lindemberg de. Valorização do Cariri. In: Revista Itaytera, 1957, n0 III, p.187.
Jornalista cratense autor de Roteiro biográfico das ruas do Crato publicado em 1968 e de inúmeras
matérias veiculadas na imprensa local e em jornais de Fortaleza sobre a cidade e a região. Foi um dos
fundadores do ICC exercendo a função de Secretário Geral até o ano de 1974. Também fez parte da
5
Dentre as atividades programadas para o ano de 1954, destacamos: procura
do local onde foi fuzilado Joaquim Pinto Madeira; construção na Praça da Sé da
Biblioteca Municipal; construção de monumento para homenagear os “heróis de 1817”;
convidar Rachel de Queiroz para vim ao Crato; luta pela fundação do Museu do Crato;
envio de banda cabaçal a São Paulo para participar das comemorações do quarto
centenário da cidade; publicação da Revista Itaytera; planejar homenagem póstuma a
Irineu Pinheiro (primeiro presidente do ICC) e Frei Carlos (fundador da cidade), dando
seus nomes a duas ruas da cidade11.
De 1955 a 1957 foram contabilizadas as seguintes realizações do Instituto:
circulação da Revista Itaytera (primeiro número lançado em março de 1955 e o segundo
em abril de 1956); realização de sessão extraordinária com a participação do historiador
e Presidente da Academia Cearense de Letras Raimundo Girão (abril de 1955);
conferência do Dr. Antônio Alves de Queiroz sobre a “Floresta do Araripe” (abril de
1955); início de uma campanha pela fundação da Faculdade de Filosofia no Crato (maio
de 1955); comemoração pelos cem anos do jornal “O Araripe” (julho de 1955);
homenagem ao centenário do Barão de Studart (início de 1956); intensificação da
campanha pela criação do Museu do Crato (abril de 1956); eleição de nova diretoria
para o Instituto (outubro de 1956); instalação da sede do ICC no Edifício São Luis
(entre julho e outubro de 1956); circulação do número inaugural do “Jornal do Instituto”
“destinado a propugnar, sobretudo, pelo Museu do Crato” (janeiro de 1957)12.
Entre conferências promovidas por essa “entidade de cultura” (proferidas por
seus sócios e convidados ilustres), comemorações cívicas, criação de lugares de
memória (museu, biblioteca, arquivo, monumentos, batismo de ruas com nomes de
políticos e intelectuais de destaque nacional, estadual e da própria região), participação
em debates acerca das mais variadas questões de interesse público (como a falta de
preparo da região para receber a energia de Paulo Afonso), campanha de valorização e
comissão de organização da revista Itaytera a partir de seu terceiro número, assumindo de 1975 a 1976 a
presidência do Instituto e de 1978 a 1980 a vice-presidência, retornando ao cargo de 1983 a 1987.
11 “Bibliografia, notas e comentários. Atividades do Instituto Cultural do Cariri em 1954”. In: Revista
Itaytera, 1955, n0 I, p.166. Irineu Pinheiro, nascido em Crato, foi um dos fundadores do ICC e seu
primeiro presidente. Sua morte aconteceu no ano seguinte à criação do Instituto. Formado em medicina,
dedicou grande parte de sua vida a pesquisa histórica sobre o Crato e o Cariri. Suas principais obras são:
O Juazeiro do Padre Cícero e a revolução de 1914, publicado em 1938; O Cariri, lançado em 1950 e
Efemérides do Cariri, obra póstuma finalizada pouco antes de sua morte.
12 “Principais atividades do Instituto Cultural do Cariri (março – 1955/Out. – 1957)”. In: Revista Itaytera,
n0 III, 1957, p. 174.
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incentivo a cultura popular – entendida como “folclore” -, completou o Instituto em
outubro de 1958 cinco anos de “existência bem fecunda” de “serviços prestados a região
sul-caririense”.
Fazendo um balanço desses anos, José Alves de Figueiredo Filho afirmou
que “é hoje o INSTITUTO o centro intelectual onde se abrigam os principais
cultivadores da inteligência desta zona e já é procurada pelos pesquisadores de fora,
como a maior fonte de informações do Vale Caririense”13. Em poucos anos de
existência, portanto, a Instituição garantiu para si visibilidade e reconhecimento
político, cultural e social tanto na região quanto em outros lugares do Ceará e do Brasil.
Ao manter intercâmbio com outras instituições semelhantes, como a
Academia Cearense de Letras e o Instituto Histórico e Geográfico do Ceará; ao receber
estudiosos e pessoas ilustres de outros lugares, como a escritora Raquel de Queiroz, o
historiador Raimundo Girão, o Professor Antonio Pinheiro Filho da Escola de Minas de
Ouro Preto, o escritor japonês Kiyoshi Ando (que estava escrevendo um livro sobre o
Nordeste), por exemplo; ao viajarem proferindo conferências e dando entrevistas pelo
Brasil afora, como o fez o dirigente do ICC em 1964, José Alves de Figueiredo Filho,
que no Rio de Janeiro, na Casa do Ceará, fez palestra sobre o folclore caririense e em
São Paulo concedeu entrevista ao escritor e folclorista Alceu Maynard de Araújo, na TV
Cultura; ao manter sócios correspondentes em vários pontos do Brasil, como em
Fortaleza, Manaus, Curitiba, Rio de Janeiro, Teresina, São Paulo, Ouro Preto, Natal,
Salvador, Recife e João Pessoa; ao enviar a Revista Itaytera para várias bibliotecas,
algumas vezes em regime de permuta, como com a The Library of Congress (Biblioteca
do Congresso de Washington), os acadêmicos do ICC construíram para si importante e
sólido capital simbólico14 político, intelectual e cultural ao longo de sua existência.
O próprio ato de inauguração da instituição principia a construção desse
capital. Embora fundado e instalado em 04 de outubro de 1953 no salão da Biblioteca
13 FIGUEIREDO FILHO, J. de. “Renasce pujante o rico folclore cearense”. In: Revista Itaytera, n0 IV,
1958, p.01. José Alves de Figueiredo Filho foi um dos principais nomes do ICC, tendo sido um de seus
fundadores. Assumiu a presidência da instituição após a morte de Irineu Pinheiro, permanecendo na
função até o ano de seu falecimento em 1973. Foi também fundador e professor da Faculdade de Filosofia
do Crato e diretor da revista Itaytera, desde seu lançamento, e membro da Associação Brasileira de
Professores Universitários de História no final dos anos 1960 e inicio de 1970. Deixou publicado várias
obras de cunho historiográfico, dentre as quais destacamos: Engenhos de rapadura no Cariri (1956);
História do Cariri (composta por quatro volumes e publicada entre os anos de 1964 e 1968); Folguedos
infantis caririenses (1966) e O folclore no Cariri (1962).
14 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
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Pública da cidade do Crato, é o dia 18 de outubro desse ano que é considerado data
oficial da fundação do ICC. Nesse dia, às 14:00h, tomaram posse em Sessão Magna no
Salão do Colégio Diocesano do Crato a diretoria e os membros das comissões
permanentes. A data não poderia ser melhor, já que nesse dia é comemorado o
centenário de elevação do Crato à categoria de cidade.
Ao ter tido sua fundação inserida num preciso momento histórico da cidade,
em que alguns dos sócios fundadores participaram como organizadores dos festejos,
como José de Figueiredo Filho (que tomou posse como presidente do Instituto) e o Dr.
Jósio Alencar Araripe (sócio efetivo e então Secretário da Prefeitura), seus idealizadores
revestiram, desde o seu nascedouro, portanto, o Instituto de forte capital simbólico
garantindo-lhe uma origem e lugar de distinção na história da cidade.
Distinção social era o que não faltava aos seus sócios: políticos,
historiadores, literatos, jornalistas, médicos, advogados, cientistas, representantes da
Igreja Católica, muitos pertencentes às famílias tradicionais cratenses, compunham o
quadro de sócios fundadores e colaboradores da agremiação. Foi a partir desse lugar
social15 que os intelectuais do ICC empreenderam esforços para dinamizar as artes,
ciências e letras na região e pensar o Cariri enquanto unidade regional a partir do Crato.
Analisando a construção cultural da idéia do Crato como “cidade da cultura”,
cuja gênese, segundo Cortez, pode ser localizada nos “acontecimentos sócio-religiosos”
ocorridos em Juazeiro do Norte a partir de 1889 envolvendo Padre Cícero e a beata
Maria de Araújo (a transformação da hóstia em sangue), a autora, ao recuperar a
historicidade dessa construção, evidencia que desde a segunda metade do século XIX o
“Crato se propunha ser o núcleo disseminador de um projeto civilizador para a região do
Cariri”. Tanto por ser “o espaço mais povoado e de maior projeção na região”, quanto
por “ser o local onde se concentrou o maior número de intelectuais”16. Ainda de acordo
com a autora:
[…] os esforços de intelectuais, políticos, religiosos e capitalistas,
consubstanciaram-se também na lógica do contraste em relação a
Juazeiro do Norte, orientando a produção simbólica do Crato na
15 CERTEAU, Michel. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
16 CORTEZ, Antonia Otonite de Oliveira. A construção da “cidade da cultura”: Crato (1889-1960). Rio
de Janeiro, 2000, Dissertação de Mestrado, p.19.
8
região através da valorização de uma cultura letrada e da reprodução
dos padrões de condutas civilizadas para homens e mulheres17.
Nessa relação de contraste, Juazeiro como local de crendices, de fanatismo
religioso e o Crato como lugar de civilidade e da cultura letrada, é que se congregaram
esforços no sentido de construção de uma identidade cratense por parte de sua elite
política, intelectual e econômica. Os organizadores do ICC, pois, são herdeiros dessa
tradição racionalizadora e civilizadora que procurava colocar o Crato em posição de
destaque em relação aos outros municípios da região.
Nesse sentido, compreende-se porque o Crato, desde a segunda metade do
século XIX, e o ICC, a partir da segunda metade do século seguinte, se constituíram em
lugares a partir de onde seria possível pensar um projeto de modernidade e progresso
para a região. Para tanto, era preciso somar esforços não só para construir uma
identidade e memória cratense mas também caririense. “No decorrer de tal engenho”,
como nos fala Roberto Marques, “a memória da cidade do Crato se confunde com a
memória do Cariri, numa constante disputa entre as lideranças locais para constituir-se
como memória hegemônica da região que aos poucos vai se inventando”18 .
É certo que outros lugares de promoção e difusão das letras, artes e ciências
foram criados no século XIX e ao longo do XX (associações literárias, imprensa,
seminário, escolas, museus, faculdade, entre outros), mas o ICC, certamente, despontou
e se constituiu como o lugar de referência para a valorização, divulgação e construção
não só da idéia do Crato como “cidade da cultura” como também de (re)invenção do
espaço carirense nesse último século.
Nenhuma outra “sociedade civil” no sul do ceará entre os anos 1950 e 1970,
angariou para si tanto prestígio e visibilidade quanto o Instituto Cultural do Cariri. A
razão reside no fato da Instituição ter se tornado local de produção da história e da
memória da região. Como afirmou o presidente do ICC em 1999, Dr. Raimundo
Borges:
O Instituto Cultural do Cariri é a Academia de Letras da região.
Possui patrimônio cultural que conta a história do Cariri […] não
precisa arrepender-se do que não fez. Ele possui um patrimônio
17 Idem, p.14.
18 MARQUES, Roberto. Contracultura, tradição e oralidade. (Re)inventando o sertão nordestino na
década de 70. São Paulo: Annablume, 2004, p.59.
9
precioso de riquezas morais e intelectuais. Sempre defendeu a
dignidade das letras. Tem dado às letras do nosso País uma série de
publicações que bastariam para justificar o seu quase meio século de
existência. […] Tem ocasionado um verdadeiro rebuliço no campo
rico da nossa intelectualidade […] Sabe-se que a maior glória do
Crato e da região repousa na sua maior parte na história de seu amor
à liberdade e à cultura intelectual. Pois este patrimônio de grandeza
inigualável encontra no ICC o seu maior sustentáculo, merecendo,
portanto, o irrestrito e merecido apoio do povo e das autoridades
cratenses.19
A construção desse patrimônio, inclusive, garantiu à agremiação o apoio
moral e material de autoridades cratenses que atuavam no Senado Federal e na Câmara
de Vereadores do Crato que procuravam garantir verbas para o Instituto20.
(Re)inventando o Cariri
O Cariri, enquanto região geográfica e cultural diferenciada do restante do
Ceará, figura no discurso historiográfico desde a segunda metade do século XIX. No
movimento de constituição da Nação brasileira, a partir da busca de suas origens, do
estabelecimento de marcos temporais e de fronteiras geográficas e culturais, o Ceará
buscou demarcar seu lugar de pertencimento à unidade nacional que então se construía.
A partir de uma determinada cultura histórica e de modelos de escrita
referenciados no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado em 1838, alguns
historiadores empreenderam árduo esforço de datação das origens do Ceará, de
delimitação de suas fronteiras externas e internas balizadas a partir de aspectos naturais,
culturais e históricos.
O esforço de olhar para dentro do Ceará, definindo suas especificidades,
particularidades, fazia parte do mesmo esforço de construção de uma narrativa histórica
comum que o inserisse nos quadros da história nacional. Nas palavras do historiador
Almir Leal de Oliveira:
19 BORGES, Raimundo. “O Instituto Cultural do Cariri”. Revista Itaytera, n0 XXXXIII, 1999. In:
CORTEZ, Antonia Otonite de Oliveira. A construção da “cidade da cultura”: Crato (1889-1960). Rio de
Janeiro, 2000, Dissertação de Mestrado, p.105.
20 Para exemplificarmos fazemos referência a seguinte citação: “A Câmera de Vereadores do Crato está
sempre na linha de frente, quando se trata de assuntos ligados ao instituto. Jósio de Alencar Araripe,
Aluisio Cavalcante e, recentemente, José Luiz de França e José Pinheiro Esmeraldo apresentaram verbas
para o Instituto, sempre aprovadas por unanimidades de votos e sancionadas pelo Prefeito Dr. Ossian de
Alencar Araripe”. Na Câmara Federal é citado o nome do deputado Antonio de Alencar Araripe e no
Senado Federal o do General Onofre Muniz. Na Câmara Estadual, os nomes dos deputados Décio Teles
Cartaxo e Cincinato, de Santana do Cariri, são destacados. “Deputados e vereadores que trabalham pelo
Instituto Cultural do Cariri”. In: Revista Itaytera, 1958, pp. 151 e 152.
10
As delimitações de uma particularidade local e regional para o Cariri
tiveram lugar a partir desse debate da cultura histórica do século XIX
no Ceará. Não apenas o Cariri, mas as diferentes regiões do Ceará
foram escrutinadas por essa crítica histórica cientificista, que visava a
definição de uma representação comum do Ceará diante da
nacionalidade, e que tinha a necessidade de integrar as
particularidades históricas em uma representação coesa da história do
Ceará. O consenso não foi construído facilmente. A invenção do
Cariri na historiografia e nas tradições do Ceará resultou, no final do
século XIX, de um amplo debate sobre o lugar que a ocupação da
região teria tido na primazia da colonização do ceará21.
Nos quadros de uma história cientificista, portanto, o Cariri é resultado da
construção de um discurso histórico daquele século promovido, especialmente, por
historiadores vinculados ao Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará,
criado no ano de 1887, em busca de integrá-lo à Nação Brasil. Amalgamado a esse
movimento, a construção de uma relação identitária entre os vários municípios e regiões
cearenses.
Apesar das décadas que separam o século XIX do ano de constituição do
Instituto Cultural do Cariri e de já haver uma produção historiográfica que inseriu a
região nos quadros da historiografia cearense, a criação do Instituto representou um
momento importantíssimo de discussão das questões locais promovendo uma
(re)invenção do passado caririense e seu redimensionamento na historiografia do Ceará.
Antes mesmo da fundação do ICC, é necessário salientar, alguns intelectuais
da região já acuravam seu olhar sobre esse “quinhão”, entre eles os três grandes nomes
do próprio Instituto, Irineu Pinheiro, Padre Antonio Gomes e José Alves de Figueiredo
Filho22. Recuando ao século XIX encontramos, por exemplo, João Brígido dos Santos,
criador e redator do jornal Araripe, que ao longo de 1859 publicou no semanário
diversos textos sob o título de Apontamentos para a história do Cariri. Os artigos,
depois de circularem também em jornais de Fortaleza e Recife, foram reunidos em um
21 OLIVEIRA, Almir Leal de. O Cariri na cultura histórica do XIX. In: CAVALCANTE, Maria Juraci
Maia et al. História da educação – vitrais da memória. Lugares, imagens e práticas culturais. Fortaleza:
Ed. UFC, 2008, p.422.
22 Irineu Pinheiro, por exemplo, publica no ano de 1938 O Juazeiro do Padre Cícero e a revolução de
1914. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti Editores, 1938 e O Cariri. Fortaleza: [s.n.], 1950. Padre Antonio
Gomes e José Alves de Figueiredo tiveram algumas de suas pesquisas iniciadas antes da fundação do
Instituto publicadas em livros nos anos 1950 e 1960, algumas divulgadas anteriormente nas páginas da
imprensa local. J. de Figueiredo Filho e Irineu Pinheiro escreveram juntos Cidade do Crato, publicado em
1953 – ano da fundação do ICC.
11
livro no ano de 1888. Sua intenção era a “de representar, em um quadro fiel, os
acontecimentos do Cariri, tão dignos de um profundo estudo”23.
O Instituto Cultural do Cariri, portanto, representou a consolidação de
interesses, anseios e ideais que já circulavam e provocavam ações em torno do desejo de
dar visibilidade ao Crato e à região a partir do que era considerado como suas
particularidades, ou seja, natureza, cultura e história.
Associados, esses “especialistas da produção cultural”24 e a sociedade civil
em torno da qual se agremiaram, assumiram papel fundamental na (re)construção e
legitimação de discursos e imagens atribuidores de significados para o Cariri. Esse
projeto pode ser percebido não só nas finalidades propostas pelos sócios do Instituto e
nas ações programadas para cumpri-las (ver novamente citação da página 03 e 04,
especialmente os itens “e” e “f”), como nos discursos veiculados pela revista Itaytera ao
longo de décadas.
Publicada anualmente a partir de 1955, Itaytera circulou, graças aos esforços
de sócios e colaboradores, até o ano de 1999 como porta-voz dos desejos e anseios dos
membros daquela instituição. Impressa na própria região e composta em sua quase
totalidade por escritos de intelectuais locais, sócios ou não do ICC, a revista,
classificada por seus organizadores como de “caráter cultural”, surgiu como idéia dentro
do próprio projeto de criação do Instituto.
Antes mesmo de sua materialização, portanto, a revista pré-figurava como
importante mecanismo no programa do ICC para a consolidação de seus objetivos
concernentes “a valorização do cariri”. Nesse sentido, não apenas seus sócios e
colaboradores eram filhos da região como os assuntos tratados se relacionavam
diretamente aos propósitos que nortearam a criação do Instituto, ou seja, o “estudo das
23 ALEXANDRE, Jucieldo Ferreira. Quando o “anjo do extermínio” se aproxima de nós: representações
sobre o cólera no semanário cratense O Araripe (1855-1864). Paraíba: João Pessoa, Dissertação de
Mestrado, 2010, p. 74. João Brígido dos Santos foi redator e diretor do jornal O Ararripe, primeiro a
circular no Cariri entre os anos de 1850 e 1860. Um dos grandes nomes do jornalismo cearense, Brigido
foi também senador, deputado, advogado, professor e historiador, por seus Apontamentos para a história
do Cariri tornou-se sócio correspondente do IHGB.
24CORTEZ, Antonia Otonite de Oliveira. A construção da “cidade da cultura”: Crato (1889-1960). Rio
de Janeiro, 2000, Dissertação de Mestrado.
12
ciências, letras e artes em geral, e, especialmente, da História e da Geografia Política do
Cariri”25.
A apresentação do seu primeiro número, escrita pelo então presidente do
Instituto em que deixa claro o caráter da publicação, traduz muito bem o projeto da
agremiação:
Itaytera nasce com programa definido. O da defesa intransigente da
região caririense. Lutará com empecilhos múltiplos, mas saberá
vencê-los, pois conta com o apoio firme e decidido das figuras, que
integram os quadros de Instituto Cultural do Cariri, sediado em
Crato26.
Em seu número seguinte lemos:
O segundo número de ITAYTERA ainda possui maior quantidade de
páginas do que o inicial e sua colaboração está firmada por valores
reais do Cariri, não só residente nesta privilegiada região, como por
muitos que se mudaram para outras terras, mas que conservam intacto
o amor acendrado à gleba natal… Não queremos, no entanto, fazer
obra de regionalismo estanque. Pugnamos, sem desfalecimento, para o
alevantamento moral, intelectual e material da região, dentro do
estado, da nação e mesmo da humanidade, aos quais estaremos presos
por laços indestrutíveis, e agora mais cimentados, nesta época de
sofrimentos coletivos27.
Como podemos perceber, promover o “alevantamento moral, intelectual e
material da região” era o grande objetivo do Instituto Cultural do Cariri. Por isso seus
colaboradores puseram em circulação discursos e práticas “pelo triunfo de seus ideais”,
procurando colocar a região numa relação tanto de identificação quanto de
diferenciação geográfica, cultural e histórica do restante do Ceará, como destacamos
anteriormente. E para aqueles que criticavam o “programa estritamente regionalista” do
Instituto traduzido na revista:
Isso não nos molesta […]. Cremos, no entanto, que estamos dentro de
nosso verdadeiro papel. Representamos célula da nacionalidade e
antes de encararmos o todo, preocupamo-nos com a pequena parcela
que nos toca. Há muitas penas brilhantes que trabalham a serviço do
litoral e dos grandes centros urbanos. O pouco de inteligência que
temos e o muito esforço e boa vontade que possuímos, queremos
dedicá-los, quase que totalmente, à terra sofredora, sempre desprezada
25 “Ata da Sessão de Fundação e Instalação do Instituto Cultural do Cariri e de Eleição de Sua Primeira
Diretoria”. In: Revista Itaytera, n0 I, 1955, p.179.
26 FIGUEIREDO FILHO, J. de.“Explicando”. In: Revista Itaytera, 1955, ano I, p.1.
27 J. de Figueiredo Filho. “A jornada prossegue, incentivada pelas primeiras vitórias”. In: Revista Itaytera,
1956, ano II, p.1.
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no passado e agora em franco progresso pela iniciativa dos próprios
filhos28.
Percebemos nas citações acima que há uma inversão do projeto que guiou a
integração do Ceará a uma idéia de nação. Diferentemente do que ocorreu no século
XIX, em que as particularidades regionais, territoriais foram submetidas e domesticadas
a uma preocupação com o conjunto, com o todo (Brasil), os acadêmicos do ICC se
propunham a pensar em primeiro lugar o particular, proclamando pela “valorização do
Cariri”, região que também é destacada em seus discursos a favor da luta pela
“valorização do interior”29.
As justificativas para empreendimento de tamanha envergadura eram:
combater o progresso que adentrava pelo interior ameaçando tradições culturais e
costumes que representavam “as verdadeiras raízes da nacionalidade” (passado
ameaçado pelo presente) – provocando, paralelamente, o desajustamento moral da
sociedade -, e a desigualdade de desenvolvimento econômico, político, social e
educacional em relação ao litoral, sempre beneficiado por investimentos públicos e
privados em detrimento do interior.
Podemos perceber isso, por exemplo, quando do ressurgimento, em 1957, da
idéia de construção do Estado do Cariri30 em que J. de Lindemberg de Aquino, sócio do
ICC, nas páginas da revista Itaytera defendeu não a separação, mas o que ele chamou de
“regionalismo: “Não confundo regionalismo com separatismo”. De acordo com ele,
apesar de “não termos uma elite verdadeiramente regionalista”, crescia as manifestações
pela valorização do Cariri e do homem caririense frente ao litoral no sentido de
“acabarmos com o abandono em que vive a nossa região”. Por suas condições
econômicas o Cariri não deveria mais ser tão dependente do litoral:
Aí é o ponto nevrálgico da questão. Aí é que se impõe a campanha de
valorização do Cariri, que em todas as nossas cidades vem ganhando
tantos adeptos […] Porque no Cariri acontece o contrário que se dá no
28 J. de Figueiredo Filho. “Poucas palavras neste terceiro número…”. In: Revista Itaytera, 1957, ano III,
p.1.
29 Segundo J. de Figueiredo Filho, o “Crato e o Cariri, pelas suas reservas acumuladas em duras pelejas
cívicas e sacrifícios, estão bem aparelhadas para tomar posição na vanguarda dessa luta”. In: Revista
Itaytera, 1956, p. 02.
30 O desejo de se separar do litoral não era novo, no século XIX os liberais cratenses propuseram a
criação da Província do Cariri que compreenderia porções de terras do Ceará e estados vizinhos e que
teria como sede política-administrativa a cidade do Crato. CORTEZ, Antonia Otonite de Oliveira. A
construção da “cidade da cultura”: Crato (1889-1960). Rio de Janeiro, 2000, Dissertação de Mestrado.
Pp.25-31.
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País. O Sul do País é mais favorecido, enquanto o norte agoniza ou
tem o seu progresso emperrado. O caso local é o contrário, pois o
norte do Estado se agiganta em realizações enquanto marchamos
ainda às tontas, enfrentando toda espécie de inimigos do progresso e
da vitalização econômica, social, política e intelectual da zona […]
Moldemos a nossa mentalidade ao sabor unicamente dos interesses e
da nossa valorização comum. E assinemos a nossa libertação, não
política, mas se quizerem, política, também, com a gigantesca
[ilegível] da sub-estação paulafonsiana de Ingazeira31
Aponta então o autor:
Realizações como o INSTITUTO CULTURAL DO CARIRI e a
revista ITAYTERA [como] marcos avançados no sentido da
valorização a que me refiro, porque, aqui, sobretudo, veem moldando
uma mentalidade regionalista de grande envergadura. Se a marcha
das cousas continuar assim, dentro de 10 anos, no mínimo, já terá o
Cariri um aspecto social muito diferente. E queira Deus que não custe
tanto assim a fixação definitiva desse novo aspecto, tal a necessidade
que temos, presentemente, de nos congregar em círculos amplos se
queremos ver realmente o desenvolvimento e o progresso material e
espiritual da nossa região. Cada caririense fica assim convocado para
se unir a essa campanha e engrossar as fileiras dos que pretendem
como mira o sentido mais exato de reconhecer o valor da terra e a sua
capacidade32.
Ao contribuírem para a construção de “uma mentalidade regionalista” como
forma de promover a “valorização do Cariri” com o objetivo de garantir o seu
desenvolvimento material e intelectual, os membros do ICC (re)inventavam esse espaço
ao mesmo tempo em que teciam uma suposta memória e identidade caririense. Essa
(re)invenção, como indicamos, se deu a partir dos interesses de membros da elite local
pautados em suas referências históricas, culturais, políticas, da paisagem natural e
artísticas tanto herdadas quanto experienciadas. Como afirma Durval Muniz:
O discurso regionalista não é emitido a partir de uma região
objetivamente exterior a si, seja esta pensada como um recorte
geográfico já dado, seja pensada como produto da regionalização do
espaço nas esferas econômicas ou políticas. È na sua própria locução
que esta região é encenada, produzida e pressuposta. Ela é parte da
topografia do discurso, de sua instituição. Todo discurso precisa
medir e marcar um espaço de onde se enuncia. Antes de inventar o
regionalismo, a região é produto deste discurso. Definir a região é
pensá-la como um grupo de enunciados e imagens que se repetem,
com certa regularidade, em diferentes discursos, em diferentes
31 AQUINO, J. Lindemberg de. “Valorização do Cariri”. In: Revista Itaytera, 1957, ano III, pp.187 e 188.
32 Idem, p. 188.
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momentos, com diferentes estilos e não pensá-la como uma
homogeneidade, uma identidade definida a priori33.
Dessa forma, concordamos que a região não deve ser entendida como algo
exterior aos sujeitos que a habitam nem definida unicamente por sua dimensão física,
portadora, nesse sentido, de uma essência, mas como “uma espacialidade que está
sujeita ao movimento pendular de construção/destruição, contrariando a imagem de
eternidade que sempre se associa ao espaço”34.
Muitas foram as ações dos que faziam o Instituto Cultural do Cariri ao longo
do período abordado que colocaram em discussão a região, procurando atribuir e
garantir-lhe uma unidade imagético-discursiva e seu desenvolvimento material e
intelectual. Além das já citadas no inicio desse texto, destacamos ainda: a criação do
“Clube de Amigos do Folclore” em 1967; a organização de seminários para discutir o
desenvolvimento do sul do ceará, como o ocorrido em 1977; comemorações de datas
cívicas; participação de seus membros em entidades congêneres para palestrar sobre os
aspectos históricos e da cultura local, entre outros.
Entendemos, portanto, que o ICC se constituiu, durante o recorte temporal
selecionado para a pesquisa, em lugar extremamente relevante para a (re)invenção do
Cariri nos quadros da historiografia, da cultura e da política cearense. As várias ações
executadas e os discursos construídos por seus sócios e colaboradores e divulgados nas
páginas de seu “órgão oficial”, a revista Itaytera, contribuíram para a promoção e
projeção da região aqui e alhures entre os anos 1960 e 1970.
33 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Nos destinos de fronteira. História, espaços e
identidade regional. Recife: Bagaço, 2008, p.222.
34 Idem.